Um ensaio sobre o mundo sem energia.
Antigamente, quando morava lá na Interiorlândia, eu adorava quando faltava luz. Se fosse dia, a aula parava. Se fosse noite, eu pegava o carro e saia por aí. Era uma sensação estranha, tudo apagado. Uma civilização sem reação. Não é a mesma sensação em um acampamento no meio do nada. Eu amava acampar também. O céu é maravilhoso em um acampamento. A lua e as estrelas são simplesmente diferentes. Outra energia, outra ideia. Outra. Quem nunca acampou não sabe, mas deveria buscar saber. Deveria conhecer aquele céu sem poluição visual. Aquele mix de mistério exclusivo de estrelas com lua. É imperdível, um céu de acampamento. Mas na cidade é diferente. Na cidade não ter luz é paradoxal, porque a cidade foi feita para ter luz. Ela não é preparada para ficar às escuras. Os cruzamentos com sinaleira que o digam... Ah, meu aquário também! E ontem como faltou luz, e quando não tem luz hoje em dia todos ficam perdidos, na falta do que fazer, fui ensaiar...
Eu acordo. Meu despertador tem pilha. O celular já não me acorda mais. A bateria acabou, e não tenho aquele carregador que pluga no carro. Banho gelado ou esquentar água no fogão? Lavei o rosto e fui, fazendo de conta que a pergunta do banho nunca existiu. Saí mais cedo, já que se não tem sinaleira, tem confusão no trânsito. Mas não adiantou, acabei chegando atrasado do mesmo jeito. Quer dizer, na frente da empresa cheguei na hora. Mas não tem interfone, nem câmera, então, tive que esperar alguém se dar conta e ir buscar as pessoas lá fora... Essa eu não esperava.
Nas primeiras horas do dia fiquei confuso. Nas segundas horas também. Quase 50 funcionários e só um telefone, porque sem central... Os celulares todos também estavam sem bateria, então... Mas o estranho mesmo é tentar trabalhar. Tentar né. Porque a gente não pode receber nem enviar email. Precisa entrar na fila para receber ou fazer um telefonema. Ih, o tempo nublou, mal consigo ler o que estou escrevendo, em papel. Uma tarefa de 1 minuto, agora virou tarefa de 10 minutos. E pior, precisa dos 10 minutos cada vez que tiver a necessidade, não mais os 30 segundos do "Open File" - "Print File".Está tudo estranho lá na empresa, as coisas parecem que não andam. As pessoas parecem estar de férias. Mas estão mais calmas, afinal as coisas não andam, mas as pessoas não tem culpa disso. Que opção nós temos? O almoço é diferente. O restaurante parece mais chique. Tem todo um clima, tem velas. Até a super pressa dos garçons diminuiu. Nem tiraram o prato antes de eu terminar de comer (eu como devagar e largo os talhares as vezes, então, acabo perdendo o prato na menor distração. É fogo. Engraçado, as pessoas todas estão com menos pressa. E não tem selfie né? Aí o tempo rende mais ainda. Sem falar dos aplicativos e tal. Quer conversar? Vai ter que fazer isso com que está ali mesmo. Nada de falar com dispositivos hoje. O silêncio é maior, mas as bebidas não são geladas. Gostei do almoço, eu sempre comi lentamente. O ambiente ficou mais parecido comigo no comedor. 
De tarde nada mudou. Tudo como de manhã. O inverno fez com que o turno terminasse um pouco mais cedo. E aquela pequena serração deixando a rua ainda mais romântica? E mais misterioso. O mundo fica mais misterioso. E uma certa dose de mistério é charmosa, né? É lindo dirigir na cidade apagada, sempre gostei. Os shoppings estão fechados, os bares com mais clima, mas estou cansado e vou para casa. Eu moro no décimo andar, então não preciso de academia. Também não tenho mais peixes para tratar, porque o aquário... O lanche ficou mais artesanal, e a conversa virou o prato principal. As velas são românticas, mas derretem rapidamente. Os assuntos vão terminando, tudo mais vai acontecendo, desenvolvendo, e as velas derretendo... E o relógio praticamente não passa. Agora sim, esquentar água, tomar aquela espécie de banho, e aí curtir o derreter das velas.
A contagem do tempo é diferente. É. Antes eu contava por minuto. Agora eu conto por hora. Antes eu tinha tanta coisa para fazer e nenhum tempo, e agora tenho tanto tempo que nem sei o que fazer. Então eu resolvi fazer o balanço do ensaio. Daquele ensaio, de imaginar o dia sem luz. Passei, repassei, pensei, repensei, e de tantos os problemas, dificuldades que encontraria, o que mais me fascinou foi o tempo. O tempo ficou mais lento. Até o planeta parece estar girando mais devagarinho, o dia está com mais de 24 horas, certamente. Antes eu precisava de 30, e ainda assim seria pouco. Agora me sobram 10. Já que completei todas as tarefas do dia, e a vela está acabando, acabando, acabando...vou dormir... 
Ah, o último que sair, por favor, apague a luz...